Aventura: O Lírio Rosa

A mente de Kiriko era constantemente perturbada por seus pensamentos negativos sobre sua existência. Mesmo após cinco anos, ela ainda se perguntava se aquilo era justo. Todas as manhãs ela ouvia os pássaros cantando, o vento gentil da manhã acariciando sua pele, era abençoada com a oportunidade de ter refeições todos os dias e tinha um lugar para chamar de lar. No geral, levava uma vida tranquila, mas não acreditava ser digna daquilo.

Durante seu percurso até os fundos do templo, ela prestava atenção em cada minúsculo movimento da natureza, tentando colocar em sua cabeça, pensamentos de gratidão e que aquele era o caminho que deveria seguir. Talvez o destino tivesse lhe reservado aquele futuro. — Será que mereço ser feliz? — ela se perguntava. Ao descartar as cinzas, foi quase inevitável não continuar observando-as e perder-se em pensamentos novamente.

Tendo seus pensamentos interrompidos, Kiriko deu um longo suspiro antes de caminhar até Fujioka. Não sabia o motivo, mas ela se sentia cansada, pensava que a exaustão repentina pudesse ser fruto de sua mente. Talvez ela estivesse pensando demais. Antes de se sentar ao lado do sacerdote, ela fez uma reverência.

— O que deseja, Fujioka jii-chan. — ela o encarava com um sorriso puro e sincero.

Kiriko encarava o velho com admiração nos olhos. Observa-lo fazia ela se lembrar de quem já fora um dia. Ela se lembrava do seu primeiro dia no templo Lírio Rosa e como ficou receosa ao se deparar com um Han'yo. Com o tempo, percebeu sozinha que Fujioka era diferente dos Yokai, além de sua gentileza, possuía um objetivo nobre. Foi ele quem a fez compreender que podem existir outros de sua espécie que não representam uma ameaça aos humanos. É claro, Kiriko não era tola a ponto de acreditar em qualquer Han'yo, mas sentia compaixão por sua dificuldade em serem aceitos. Imaginava que talvez eles não tivessem um lugar para chamar de seu, assim como ela, após perder sua família e amigos.

Enquanto ouvia as palavras de seu mestre, ela tocava as pétalas da flor de cerejeira com a ponta de seus dedos. Pensando em cada palavra dita por ele, ela encarou a carta e por um momento sentiu uma ponta de incerteza antes de pega-la. Com a carta em mãos, ela refletiu mais uma vez sobre as palavras do homem que a fez crescer tanto.
— Jii-chan, devo confessar que me sinto insegura em relação ao futuro. — ela ergueu a cabeça, voltando a encarar Fujioka nos olhos. — Porém, aqui neste templo, aprendi tanto. Saiba que sou eternamente grata. Durante esses cinco anos, você foi minha única família. Por isso, mesmo com medo, vou acreditar em você. Os deuses e os espíritos iluminarão meu caminho, assim como fizeram até nos encontrarmos.

Avoada, ela não havia percebido o bento que estava no banco. Mesmo chegando ao final de sua jornada naquele templo, seu mestre ainda pensava em tudo para tornar sua despedida e viajem mais confortável, isso enchia Kiriko de alegria. Com o pacote em mãos, foi abrindo lentamente um sorriso. Ao remover o lenço de cima dos bolinhos de arroz, ela podia sentir o cheiro da refeição recém preparada e isso lhe dava água na boca.

Já com um enorme sorriso no rosto e mesmo sabendo que aquilo poderia ser um pouco estranho, Kiriko abraçou desajeitadamente seu mestre, tomando muito cuidado para não amassar os bolinhos. — Vou deixa-lo orgulhoso. — soltando-o de forma abrupta, a flor de cerejeira caiu de seu cabelo, mas ela conseguiu pega-la rápida e graciosamente, fazendo uma concha com as mãos. Prendendo novamente a flor em seu cabelo, Kiriko perguntou ao mestre. — Como você me indica fazer essa viagem, Ojin-chan? Faz tanto tempo que não deixo o templo.

— Certo, irei me preparar para a jornada! — conforme Kiriko caminhava, seus passos se transformavam de lentos para ágeis e animados. Há alguns minutos, ela se sentia insegura e desconfortável com algumas questões de sua vida, mas refletindo mais uma vez sobre seus próprios pensamentos, Kiriko pensou que sair do templo poderia trazer a ela uma nova perspectiva sobre o seu propósito. Talvez fosse exatamente aquilo que precisava para superar suas perdas e finalmente, conseguiria colocar tudo o que aprendeu em prática. Sonhadora, enquanto guardava seu shikigami, alguns ofuda, sua gohei e principalmente agarrava seu arco (afinal, por mais que torcesse e pensasse positivamente, poderia haver algum problema), tentava manter os seus pensamentos focados em quantas pessoas seria capaz de ajudar através dessa mudança. Visualizou a carta uma última vez antes de guarda-la na bolsa. Antes de se despedir de seu mestre, Kiriko realizou mais uma oração a Amaterasu, depois saboreou um onigiri. Já na frente daquele que a ensinou tanto, ela fez uma última reverência de forma graciosa. — Obrigada, Ojin-chan. Por tudo! Vou comer o restante do bento durante a viagem. — encarando todos os detalhes do torii uma última vez, Kiriko se sentia confiante para encarar o mundo material. Passando pela entrada do templo, estava inspirada a não olhar para trás.

Kiriko podia sentir cada movimento da natureza e tudo era perfeitamente único e especial. O vento, perseguia o caminho que bem entendesse através de sua liberdade, já os lagos eram forçados a permanecer no seu local de origem. Os insetos seguiam com suas atividades cotidianas. Cada pequena coisa em seu lugar, seguindo o seu próprio ritmo. A garota fechou os olhos e lentamente, inspirou e expirou o ar da floresta. Ela finalmente compreendia o motivo pelo qual aquele lugar era tão especial para seu mestre. Podia sentir cada sucinto sinal de vida que havia ali e isto estava acima de belo. A paz e harmonia preenchiam o coração de Kiriko, criando um sentimento de gratidão. Aqueles pequenos momentos em meio a natureza, faziam a jovem perceber como a natureza era extraordinária a sua maneira. Kiriko seguiu, caminhando em direção a estrada principal, contemplando as maravilhas ao seu redor.

No decorrer da viagem, a garota perdia aos poucos o medo da hostilidade que aquele mundo poderia apresentar. A cada pausa que ela fazia, para descansar, aproveitava para observar as plantações da região. Empolgando-se com a paisagem ao seu redor, Kiriko se permitiu caminhar um pouco mais depressa. Parecia que o mundo era o mesmo. Se ela fechasse seus olhos, poderia fingir, por um segundo, que aquele era o mesmo mundo que existia em sua vida, antes de tudo desmoronar. Ao se deparar com o mar amarelado a sua frente, Kiriko parou e respirou fundo. Um sorriso apareceu em seu rosto, enquanto admirava os campos de trigo, mas em questão de segundos, toda a tranquilidade deu lugar ao pânico e adrenalina. Antes que se desse conta, Kiriko corria em direção ao grito vindo do bosque ao leste.

Sua mente concentrava-se apenas em encontrar a pessoa que pedia por socorro, ao perceber diferentes vozes, pensou na possibilidade de haver mais de um indivíduo naquele local. Estavam feridos? Foram atacados por alguma coisa? Concentrada, a garota mal prestou a atenção no bosque ao seu redor, agora, tudo o que importava era prestar ajuda aquelas pessoas. Foi então que avistou. Ao se deparar com a cena, Kiriko abruptamente parou de correr e caminhou com calma até a árvore onde a suposta criança estava pendurada, com a mão no peito, ela tentava estabilizar sua respiração.

— Você está bem? Possuí algum ferimento? — perguntou, ainda se aproximando lentamente da árvore.

A confusão tomou conta de Kiriko. Em seu rosto havia um misto de curiosidade e preocupação. Pensou que não deveria se afastar, ela não fazia ideia do que estava acontecendo e ainda poderia ser uma condição de risco, mas também não devia ignorar as palavras daquela pessoa, pois, mesmo sendo uma criança, ainda tinha uma noção mais ampla da situação. Com um movimento rápido, a jovem correu até uma árvore com o objetivo de se esconder. Tocando a ponta traseira de uma das flechas e sentindo as penas acariciarem seus dedos, retirou-a de sua aljava com pesar por precisar usar suas habilidades de ataque tão cedo. Porém, disposta a proteger a criança e com a flecha posicionada em seu arco, Kiriko esperou atentamente pela aparição de alguma figura.

Kiriko deixou escapar um longo suspiro. Ela guardou a flecha em sua aljava e percebeu quão tensa estava quando teve a sensação de estar suando. Após secar a testa com a manga de sua yukata, ela saiu de seu esconderijo e se dirigiu até as crianças.

Com o corpo curvado devido à reverência, a jovem se pronunciou. — Me perdoem por estragar o jogo de vocês. Escutei suas vozes e pensei que fosse alguém precisando de ajuda. — seu semblante de arrependimento era perceptível.

A jovem se surpreendeu com a pergunta da garotinha, fazendo com que sua boca ficasse em formato de O. Kiriko não tinha tempo a perder, ela devia completar a tarefa aplicada pelo seu mestre quanto antes, mas em sua mente, surgiam memórias de sua infância. Naquele tempo, ela costumava ser mais aventureira e disposta, sempre se empolgava com a ideia de brincar com seus amigos. Instantaneamente, lembrou do fim que cada um deles levou e sua expressão foi se transformando para triste e solitária, lentamente. O que fez Kiriko sair daquela angústia foi o sorriso da criança, revelando o mesmo semblante inocente que seus falecidos amigos tinham.


— Acredito que não será de todo mal me atrasar um pouco. — permitindo-se relaxar a postura, Kiriko continuou com um sorriso. — Eu adoraria brincar com vocês.

Kiriko sentia-se estranhamente confortável com tudo aquilo, enquanto a garota quase a arrastava, ela percebia que estava gostando mais do que imaginava daquela situação. — Então, só está faltando esse tal “tio”? Vocês têm alguma pista de onde ele possa estar ou o caminho que talvez tenha percorrido? Ele costuma repetir os esconderijos? — empolgada, ela enchia as crianças de perguntas.